– Alexandre.
– O que foi?
– Dá uma olhada na TV.
– Na TV?
– É. Agora.
No começo, só dá para ver que é uma multidão. Enche as ruas de alguma cidade. São Paulo, ele suspeita. Vagas e mais vagas de pessoas que o fazem observar a cena entre horrorizado e fascinado. Ninguém se preocupa em manter distância, caminhando ao lado umas das outras numa passeata quase infinita.
Finalmente volta ao telefone.
– O que é isso?
– Acabou, ela responde.
– Acabou?
– Para de repetir o que eu digo. Sim, acabou. O vírus sumiu. The end. Ou, como dizem em francês: c’est fini.
– O fim? Quer dizer, sumiu?
– Ahã. Zero casos novos. Ninguém sabe dizer como, nem por que, mas é isso.
Sua voz ficou impaciente de repente.
– Estou indo para fora. Vai também. Nos falamos depois.
Ao voltar à sala, não tem coragem de sair. Fica sentado no sofá, olhando imóvel para a saída. E se ela estivesse ficando louca? E se todas aquelas pessoas ficaram loucas também? Mas a TV não cansa de dizer que é mesmo verdade. “Fim da epidemia”, continuam a apregoar os caracteres embaixo da tela, não importa o canal, até que, tomando coragem, se levanta e vai até a porta.
O par de crocs continua onde os deixou. Foi um presente da mãe. Mesmo assim jamais teria saído à rua com aquilo que não fosse o calçado mais fácil de tirar e deixar do lado de fora sem que precisasse tocá-lo. Todas as tardes, havia se costumado ao ritual. Em certo momento, até vestiu junto um par de meias pretas. Agora, no entanto, evita-o e, ao pisar no corredor com os tênis que usava do lado de dentro, dá os primeiros passos com uma sensação irracional de felicidade.
Do lado de fora, as pessoas não estão menos eufóricas do que aquelas na TV. Algumas gritam para ele, amistosas. Uma mulher de vestido estampado, puxando um cachorro minúsculo, se aproxima. Antes que possa fazer alguma coisa, ela o abraça e silencia seu espanto com um beijo.
– Conseguimos!, diz.
A fila de carros também não para de passar, assim como a calçada não para de encher. Depois que a mulher foi embora, cruza a rua, indo até o outro lado, onde tem menos gente. A praça perto do prédio, ele observa de longe, continua vazia e silenciosa. Ao ir na sua direção ainda não conseguiu se livrar de todo medo e cautela, como se todos pudessem estar mentindo. Não era assim no colégio? Entre os hábitos dos estudantes de Olaria, pelo menos no Colégio Irmã Angela nos anos 80, mentir e aprontar no 1º de abril era uma regra obrigatória. Porém nada parece mais sério agora do que um milagre que o tempo todo parecia improvável, mas que, tendo acontecido, parece o mais natural.
Ao chegar à Nilo, reconhece um buldogue que gostava de ver brincar. É um animal gordo e imenso, que costumava passar ao seu lado bufando com o mínimo esforço. Apesar do confinamento, parecia bem, sua dona também. Reconheceu depois o grupo de aposentados que costumava fumar charutos do lado de fora da padaria. A padaria ainda estava fechada, mas, quase todos presentes no lugar de sempre, acenavam dando grandes baforadas. Acenou de volta.
As previsões dos economistas e demais especialistas, feitas a respeito do vírus nos pequenos negócios, estavam erradas. A lavanderia, o chaveiro, a loja de bolos, o trailer de lanches, o sapateiro e todos os demais estabelecimentos se encontravam de portas abertas. Donos e empregados, envolvidos no trabalho frenético de limpar as lojas e varrer as calçadas, preparavam tudo para funcionar novamente.
Mesmo o mendigo da quadra, que ele chama de Rei, continua em seu posto, uma poltrona de tecido esfarrapada recoberta de badulaques. Por muitos dias, seus pensamentos foram para ele, o que devia ter pensado ao ver as pessoas simplesmente desaparecendo? Teria sentido medo? Fosse o que fosse, não obteve nenhuma resposta. Ao vê-lo, trocaram apenas um cumprimento silencioso.
Ela ligou de novo:
– Viu só?
– Todo mundo saiu mesmo, ele diz.
– E agora?
– Agora?
– É. Como voltar ao normal?
– Te ligo já, ele responde, desligando apressado.
Na calçada lotada, tem algum trabalho ao voltar ao prédio. Mesmo assim, não demora a estar de volta à garagem. Vence em seguida os dois andares com facilidade.
Os crocs continuam no mesmo lugar. Ele os apanha, depois volta a descer. A festa do lado de fora já produz um burburinho ensurdecedor. Tenta ignorá-lo, chegando de novo à garagem. Ao abrir a lixeira do prédio, atira dentro os crocs, deixando a tampa fechar com um estrondo. Volta depois para o apartamento, com a sensação inexplicável de que tudo vai ficar mesmo bem.
* Alexandre Rodrigues é escritor e autor de Veja se você responde essa pergunta (Não Editora-2009) e Maldito Frio (em conclusão). É mestre em Escrita Criativa pela PUCRS.
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