Filho de Moraes Moreira estava compondo trilhas para 25 poemas inéditos do pai, que homenageará numa live sexta (24). Além do respeito pela música, conta ter herdado a paixão pelo futebol: ‘Levei a camisa do Flamengo para o velório e botei em cima dele’
“Meu filho, como sinto saudades suas, você é meu melhor amigo”, escreveu Moraes Moreira em sua última mensagem de WhatsApp a Davi Moraes, na sexta-feira que antecedeu sua morte, no último dia 13. O compositor estava há quase um mês isolado da família por causa do coronavírus.
— A pandemia foi um golpe duro, tirou sua rotina de ir à padaria e fazer shows, que era uma necessidade de vida dele — diz Davi.
O filho alivia a dor da perda, que ainda tenta processar, lembrando que conviveu intensamente com o pai, de quem herdou paixões como o futebol – no velório, colocou sobre Moraes, rubro-negro fanático, a camisa do Flamengo. Com ele, tambem construiu a mais sólida parceria musical de sua carreira. Na quarentena, criavam seu último trabalho juntos. Davi compunha trilhas para 25 poemas inéditos de Moraes. Agora, vai homenagear o pai numa live pelo Instagram, nesta sexta (24), às 16h, que dedica também aos fãs como forma de gratidão.
— É uma saudade inexplicável. Sabia que quando esse dia chegasse, nunca estaria preparado — diz o músico de 46 anos. — Tínhamos uma relação simbiótica, de espelho. Quando eu estava agoniado, ele ligava e dizia “bicho, tô sentindo daqui”. Quando ele se separou, segurei a onda dele. Quando fui eu, ele segurou a minha.
Do casamento de Davi (com a cantora Maria Rita), aliás, nasceu Alice, de 7 anos, responsável pelas maiores alegrias de Moraes ultimamente. De uma bebê que estranhava o avô cabeludo, ela passou a xodó. Recentemente, após assistir ao musical “Novos baianos”, a menina aprendeu a cantar suas músicas. Entendeu ali que seu avô era um artista. E muito importante.
Como tem lidado com a perda?
É um sentimento estranho. Além de pai e filho, a gente criou essa relação mais forte e próxima por causa da música. Se há cumplicidade entre quem toca junto, imagina isso com o pai a vida toda? Mas ver que ele foi ativo e fez o que ama até o último momento, é uma dádiva.
Como foram seus últimos momentos com ele?
Peguei minha filha na escola e fomos ver a passagem do show dele no Manouche (casa na Zona Sul do Rio, onde Moraes fez a última apresentacao, “Elogio à inveja”, em 13 de março). Ela ficou encantada. Sempre adorou o avô, mas depois que foi ao musical, entendeu a história e aprendeu as músicas, a ficha dela sobre o artista que ele era caiu. Passamos a tarde juntos até a hora do show. No dia seguinte, começou o isolamento. Exatamente um mês depois, ele se foi.
Moraes estava incomodado em não poder fazer show por causa da quarentena, né?
Muito. A gente se fala todo dia. Nos distraíamos, falávamos de música. Quando ele estava impaciente, eu o tranquilizava, e vice-versa. Temos hábitos parecidos, acordar cedo e ir à padaria. Quando viajávamos em turnê, chegávamos no café na mesma hora. Não poder caminhar na rua, encontrar amigos na padaria e ir ao escritório, seu ritual diário, estava sendo duro para ele. Ele sempre nos passou, a mim e a Cissa (Maria Cecilia Moraes, irmã de Davi) a importância do trabalho. Ia ao escritório, resolvia coisas, pegava o violão, fazia uma música nova e marcava show. Tudo andava junto. Nos ensinou a não desistir nunca, ir à luta e acreditar. Era incansável.
Como foi quando recebeu a notícia da morte?
Tinha acabado de acordar. A Cissa me ligou, e no “alô” já senti a voz diferente. Foi louco. Porque ele tinha tinha feito um check-up em janeiro e ficamos impressionados. Ganhou notas 9 e 10 do médicos nos exames. Fez coração, pulmão, foi no otorrino do Roberto Carlos e não tinha sequer uma lesão nas cordas vocais. Era de uma força, apesar da idade. Foram 72 anos de pauleira, trabalho e vida bem vivida. Quando íamos ao hospital, ele pensava “pronto, agora vão descobrir alguma coisa”. O que mais detestava era cancelar show por causa da saúde. Tinha seriedade com trabalho. Reclamava que não podia ir para o hospital que as pessoas logo botavam no jornal… A gente morria de rir.
Mas era para ter trio elétrico na rua, carnaval fora de época na despedida, né? Triste ele partido em tempos de pandemia…Por outro lado, o país está parado e olha para a obra dele. É forte o simbolismo de ele ter partido agora. Não ficou impossibilitado de fazer show por problema de saúde ou velhice. Quando uma pandemia mundial lhe tirou o direito de viver seus hábitos, preferiu sair de cena. Em casa, trancado, sem poder ver a neta… É muito cruel esse isolamento dos idosos. Tenho escutado músicas dele diariamente, conversado com ele. Venho sentindo sua presença, uma luz boa. Tenho tocado violão, relembrado coisas antigas. Caetano diz que tocar violão, triste ou feliz, traz um sentimento bom.
Todo mundo conhece o Moraes artista. Como ele era pai e avô?Todos que conviviam com ele, o amavam. Recebemos uma enxurrada de amor com sua partida. Era doce, amigo, parceiro de seus músicos, tanto que teve bandas longas. Nunca vou esquecer aquele abraço de conforto que ele tinha, faz parte da minha memória de criança. Era carinhoso. A Alice sentiu isso e desenvolveu uma relação bonita com ele. Estava sempre com saudade do vovô, ligava. Ele ficava numa alegria… Ia na loja de brinquedos, sozinho, e dava os presentes que ela mais gostava. Quando ela assistiu ao musical, que mostra que eles não desistiram mesmo diante das dificuldade de grana, ela falou: “Eles tinham fé, né?”. Meu pai ficou maravilhado com esse comentário. Ele levou isso para a carreira solo. Não foi fácil recomeçar. Fez o primeiro disco, maravilhoso, mas não aconteceu nada. Até encontrar Armadinho, Osmar, e começar a escrever a história dele com trio elétrico do carnaval.Quais as memórias mais queridas você tem com ele?Sempre foi um pai presente, de você olhar para o lado e ele estar. Referência de segurança, carinho, doçura. Passava valores de caráter, e podíamos falar qualquer coisa. Levava a família para as turnês no nordeste, eu ia para o estúdio também. Me passou a paixão futebolística, Maracanã, Flamengo. Ficou amigo de jogadores. Nei Conceição e Afonsinho jogavam bola com ele no sítio (dos Novos Baianos em Jacarepaguá). Os 70 anos dele foram na sede do Flamengo, com os campeões de 1981. Levei a camisa assinada por todos eles para o velório e botei em cima dele. Para o Zico, ele fez três músicas. Paulo Cesar Caju dizia “você já fez três músicas para o Zico e nenhuma para mim”. Ficou devendo… A gente ia ao Caxinguelê (um campo no Horto), numa pelada da turma da música. No meu aniversário, futebol era tradição. Nos meus 11 anos, o jogo estava duro, 4×4, e ele deu uma de Eurico Miranda. Marcaram um pênalti, fiz o gol e ele acabou com o jogo. Uma vez, ele fez um show no Copacabana Palace e o Roberto Dinamite quis ir ao camarim. Eu, com uns 12 anos, falei: “Você vai deixar o Dinamite entrar? Vou contar para a torcida do Flamengo”. Ele fez um gol no Maracanã, num jogo de cantores contra a atores, que marcava a volta do Zico para o Flamengo vindo da Itália. Fez o gol, e a torcida do Flamengo levantou. Vivi dois sonhos de infância: meu pai na música e artilheiro.
A parceria musical de vocês começou quando você ainda era criança, né? Como foi?Ele via a minha fissura em querer tocar e disse “começa com o cavaquinho”. Violão era grande demais. Desenvolvi tocando os choros do Waldir Azevedo. Ele ficava comigo tirando melodias. Tirei “Delicado”, “Brasileirinho”, que toquei com ele e Armadinho no Rock in Rio, aos 11 anos. Cedo comecei a fazer participações nos shows. Ele tinha confiança em mim, e eu me sentia seguro. Mas nunca me deu lugar na banda antes de eu merecer, não me dava nada de mão beijada. Batalhei para virar guitarrista do grupo. Aos 17 anos, fiz o primeiro show inteiro. Eu ia evoluindo, e ele me dava um pedal novo. Quando fizemos a nossa primeira parceria (“Vai à forra no forró”, de 1986) e ganhamos direito autoral, ele disse “agora você ter o prazer de comprar algo com o dinheiro que recebeu”. Comprei meu primeiro afinador eletrônico e cordas importadas. Sempre tive paixão pela guitarra elétrica. Pepeu e todos da família Gomes, além de Armadinho e meu pai, eram mestres, ídolos dentro de casa. Comparados a eles, só os jogadores do Flamengo (risos).
Quais conselhos musicais mais preciosos ele te deu?Eu ficava louco para aprender as levadas de frevo, de afoxé. E ele dizia: “Vai tocando que você vai descobrir como dar aos ritmos a sua própria levada”. E me levou ao Badauê, aos ensaios do Olodum, do Ilê Aiyê, assisti às saídas dele com Armadinho, Dodô e Osmar desde pequeno. Tenho a coisa percussiva na guitarra, a influência dos blocos afros. Até os discos da Maria Rita de samba, faço com guitarra elétrica. Os Novos Baianos oficializaram a linguagem brasileira da guitarra elétrica, com sotaque de samba no rock, herança forte para mim. Comecei a fazer trabalhos de samba com a Maria (Rita), ganhamos o Grammy de Melhor Disco da Samba dela com guitarra. Trazer esse sotaque do cavaquinho em que eles foram pioneiros, sempre foi natural pra mim. Tenho essa gratidão. Ele trabalhou com arranjadores incríveis como Lincoln Olivetti, que depois virou meu parceiro. Com Sivuca, Francis Hime, Cristóvão Bastos, César Camargo Mariano (pai de Maria Rita). Olha que bonito, os dois avôs da Alice tiveram esse encontro… Maria conta que César, gênio da música e super exigente, dizia: “Se tem um cara que respeito é Moraes Moreira, nunca chegou para mim com uma música mais ou menos”.
Você foi muito influenciado por ele. Como o influenciou?Ele dizia que ficava emocionado com o fato de minha guitarra dar muito certo com as coisas dele. A gente tinha essa tabelinha. Eu chegava com uma ideia, ele, com outra. Era uma relação parecida com a que ele tinha com Pepeu no Novos Baianos. Fui amadurecendo, fazendo meu próprio trabalho, toquei com Marisa (Monte), Caetano (Veloso), Adriana (Calcanhotto), e sempre voltava a tocar com ele. No carnaval, estávamos sempre juntos. Com Caetano, eu participava da construção do arranjos por causa da bagagem que desenvolvi com meu pai. No show “Moraes e Davi” revezávamos o repertório como dois artistas batendo bola. Também era parecido como o que acontecia com ele, Osmar e Armadinho. Meu pai começou a fazer letra das músicas instrumentais deles, como “Pombo correio”, “Sucesso nacional” e “Chame gente”. Fui desenvolvendo essa parte arranjador, pesquisar a modernidade da guitarra com os pedais, e ele foi deixando minha linguagem entrar, minhas influências, Michael Jackson, funk old school. Ele ficava feliz quando chegava com uma música nova, e eu vinha com a introdução. Tudo que recebi dele pude começar a dar de volta como guitarrista e arranjador, realizei um sonho de menino.
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