A Coalizão Vozes do Tocantins por Justiça Climática torna pública nesta segunda-feira, 17, a Carta de Repúdio elaborada pelas organizações membros da Coalizão Vozes do Tocantins, Associação Indígena Apinajé Pyka Mex e pelo Centro Cultural KÀJRE (do povo Krahô), além do apoio e da Associação União das Aldeias Apinajé Pempxá.
O documento retrata um episódio ocorrido na quinta-feira, 06, numa Audiência Pública promovida pelo Ministério Público do Tocantins (MPTO), Ministério Público Federal (MPF) e Defensoria Pública do Tocantins (DPE-TO), para o debate de problemas fundiários e ambientais no Tocantins, onde os povos indígenas foram proibidos de adentrar ao local em posse do “Maracá”, instrumento musical importantíssimo nas manifestações culturais e é um dos símbolos maiores de cultura material e espiritual para este povo.
Confira a carta na íntegra:
O Maracá
Para nós, povos indígenas, povos originários desta terra a que chamam de Brasil, especialmente para nós, os povos Timbira, o Maracá feito de cabaça, mais que um instrumento musical, é um objeto sagrado! Ele é o guia de nossas cantorias e danças, mas, também, está ligado, em várias de nossas mitologias, à nossa própria criação enquanto seres humanos, enquanto seres dotados de vida. Para manuseá-lo, um cantor precisa de resguardo, muito preparo, formação e conhecimento. Não é só um instrumento musical: é um dos símbolos maiores de nossa cultura material e espiritual.
No último dia 06 de junho, quinta-feira, depois de cerca de dez horas de viagem, nós Panhĩ (Apinajé), chegamos em 24 pessoas. E nós Mēhhĩ (Krahô), após cerca de seis horas de viagem, chegamos em 15 pessoas. Chegamos, nós, originários desta terra, à Palmas, capital deste estado a que chamam de Tocantins. Mesmo que a viagem tenha sido longa e cansativa, chegamos felizes: crianças, jovens, mulheres e homens, anciãs e anciãos. Estávamos animados e sabíamos da importância de nossa presença na audiência pública “Problemas fundiários e ambientais no Tocantins”. Entre nós havia um cantor com sua voz e seu poderoso Maracá!
Mais do que ninguém, nós, povos originários desta terra, juntamente com outros povos tradicionais (quilombolas, quebradeiras-de-coco-babaçu, pescadores artesanais etc.) e pequenos agricultores, assentados e acampados da reforma agrária, sabemos dos “problemas fundiários e ambientais” – nós somos os guardiões e guardiãs da vida, das matas, do cerrado e das águas! Nós ouvimos e sentimos o que a Terra está sofrendo, entendemos o seu pedido de socorro: incêndios, desmatamentos, poluição, caça e pesca ilegais, veneno, garimpo, invasões, grilagens, intimidações diversas aos seus guardiões e guardiãs… é tanta violência! Mas a violência, simbólica ou concreta, não acontece só no campo! Quando o povo do campo, das matas, do cerrado, das águas e das florestas está na cidade, ele também se sente ameaçado… a violência paira em vários sentidos.
Estávamos em Palmas representando nossos povos Apinajé e Krahô, e, de alguma forma todos os povos indígenas do estado do Tocantins. Organizados e mobilizados pela Associação Indígena Apinajé PYKA MEX e pelo Centro Cultural KÀJRE (do povo Krahô), membros da “Coalizão Vozes do Tocantins por Justiça Climática”. Contamos, ainda, com o importantíssimo apoio e presença da Associação União das Aldeias Apinajé PEMPXÀ. Era cerca de 13h45 quando nos encontramos, em frente ao prédio do Ministério Público Estadual do Tocantins, com nossos amigos e parceiros da Coalizão, companheiros e companheiras de lutas! Combinamos que entraríamos todos juntos, em forma de cortejo, com nossas bandeiras e seguiríamos em cantoria, puxada e entoada pelo grande mestre Alexandre Apinajé, o Zé Cabelo, com seu poderoso Maracá! Seria uma festa linda!!! As Vozes do povo se fariam ecoar naquele auditório, em plena selva de concreto e aço! Zé Cabelo foi na frente e passando a catraca, viu-se obrigado a parar e esperar: as mulheres Apinajé e Krahô passavam por uma situação de revista que, ainda que protocolar, era para elas vexatória: abriam e reviravam suas bolsas com fraldas, garrafas d’água, frutas e artesanatos… uma primeira violência sofrida naquele dia. Mas o Zé Cabelo e as mulheres revistadas não paravam de cantar!
Pouco tempo depois, enquanto esperava a revista das mulheres, um policial que fazia a segurança do prédio interrompeu a cantoria e disse que o mestre Zé Cabelo não poderia seguir com o Maracá, pois em cima dele havia uma ponta e que poderia ser um objeto letal. Houve um pouco de discussão e estarrecimento – dos indígenas e dos nossos parceiros e companheiros não indígenas: “Ninguém entra, se o Maracá não entrar!”
Zé Cabelo tentou argumentar: sem o Maracá não há canto, não há ritual! O Maracá é um ente vivo! Deixá-lo para trás é como deixar um dos nossos…
Incredulidade diante do que estava acontecendo. Raiva, indignação e sentimento de humilhação! Só quem sofreu ou sofre com o racismo sabe descrever essas sensações. Sim, racismo! Porque por mais que o protocolo de segurança tenha sido acionado para barrar aquela manifestação e impedir a entrada do Maracá, para nós, indígenas, a revista e a interdição do Maracá é mais uma demonstração do racismo que estrutura nosso Estado e nossa sociedade – ainda persiste a visão colonialista, intolerante e que ignora as especificidades e diversidades do povo brasileiro, dos povos brasileiros!
Em nota, o Ministério Público Estadual do Tocantins disse que seguia os protocolos de segurança, que prezava pela integridade e o “bem-estar” dos que ali estavam presentes – como se a atitude não causasse um tremendo mal-estar em nós, indígenas. Ora, uma caneta pode ser mais letal que um Maracá! Disseram que após a “autorização do responsável” o Maracá foi liberado! Não disseram, porém, que precisamos acionar as advogadas da “Coalizão Vozes do Tocantins” e outros apoiadores para “negociarem” a liberação. A nota termina dizendo que a PM que fazia a segurança agia de modo cortês. É fato! Não houve agressividade ou falta de educação! Mas a violência estava lá… A cordialidade também pode ser usada de forma agressiva. Sabemos disto desde 1500! O mais interessante é que não há, em nenhum momento da nota, um pedido de desculpas, por mais simples que fosse!
A nós, povos indígenas, e a nossos companheiros de luta, parece mesmo que o MPE do Tocantins não está preparado para receber e ouvir o povo! Embora aquela casa tenha sido construída para, justamente, garantir os direitos do povo, inclusive o direito à defesa de direitos, à voz e fala, à expressão!
Nós conhecemos seus protocolos, estudamos e conhecemos suas leis! Não somos manipulados, como os defensores do agronegócio, que estavam na audiência, insinuaram (Mais um ato de racismo?)! “Não somos piolho para andar na cabeça dos outros”, costuma dizer uma importante liderança do povo Apinajé. Nós estudamos, conhecemos suas leis, regras e protocolos; lutamos, tentamos dialogar, tentamos ser diplomáticos e corteses; e, acima de tudo, sofremos e morremos com suas leis há 524 anos!
Em tempo: os defensores do agronegócio, advogados, políticos etc., que estavam presentes na audiência, comparavam a discussão sobre a pauta fundiária e ambiental, que ocorria no auditório, a uma guerra, diziam também que não eram a favor da violência no campo, que não eram contra os indígenas, quilombolas e agricultores… ora, quem promove a violência e que desrespeita os direitos dos povos e da natureza? Que guerra é essa em que apenas um dos lados morre, um dos lados sofre, um dos lados é humilhado?
Fonte: ASCOM/Vozes do Tocantins
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