Por Anna Ortega/Nonada Jornalismo
A primeira imagem que Graciela Guarani fez quando olhou pelo visor de uma câmera foi a de um rosto. Ela tinha 13 anos, e ao segurar o equipamento, quis direcioná-lo para as pessoas da Aldeia Jaguapiru, no Mato Grosso do Sul. Já Olinda Yawar Tupinambá fez suas primeiras imagens enquanto gravava um documentário de conclusão do curso de Comunicação Social. Seus olhos viam através do visor a cena de um grupo de jornalistas, que preferiam cobrir a notícia de um carro queimado na estrada, do que a luta do povo Tupinambá na Bahia. Ela filmava.
Graciela e Olinda são duas cineastas indígenas integrantes da recém lançada Rede Katahirine, primeira a mapear as produções de mulheres indígenas realizadoras do audiovisual brasileiro. A iniciativa, concebida pelo Instituto Catitu, identificou 75 cineastas no território brasileiro, de 32 etnias, de diferentes regiões e povos. A Rede reúne desde cineastas com mais de 10 filmes gravados até aquelas que fizeram seus primeiros filmes. Como um “encontro de gerações”, a Katahirine é a primeira a iniciar uma estatística desse grupo.
O mapeamento é organizado por “biomas” e não por regiões geográficas. A Mata Atlântica e os biomas do Nordeste são os territórios com maior presença de realizadores indígenas (33), enquanto o único bioma em que – ainda, ressaltam, – não há mulheres mapeadas é o Pantanal. “O cinema que a gente faz é muito ligado a uma consciência bem resolvida sobre como anda nosso processo de sobrevivência nos lugares em que estamos”, explica Graciela Guarani, diretora e roteirista em mais de 8 obras audiovisuais. Considerada uma das pioneiras na produção audiovisual indígena, ela é autora no especial da Globo “Falas da Terra” e integra o time de direção na 2ª temporada de “Cidade Invisível”, da Netflix.
“Queremos saber quem são essas mulheres, quais são os biomas em que elas estão dispersas, e isso vai se somar a nossa vontade de não só visibilizar, mas que atrair novas possibilidades para essas narrativas”, diz Graciela.
Para chegar nas cineastas, o trabalho foi manual, a partir de uma busca ativa da coordenação da Rede Katahirine. Sophia Pinheiro, cineasta e pesquisadora aliada do audiovisual indígena, e Helena Corezomaé, jornalista e fotógrafa da etnia Umutina-Balatiponé debruçaram-se sobre catálogos de mostras audiovisuais no país, procurando novos nomes e cruzando com os que já tinham. Elas acreditam que o número pode ser ainda maior, já que muitas cineastas ainda não têm seus filmes veiculados em mostras, e utilizam as redes sociais como plataforma.
Para Olinda Yawar Tupinambá, documentarista, artista e pesquisadora, a Rede é uma forma de dar visibilidade e fortalecer o trabalho das cineastas indígenas. “Vivemos em contextos diferentes, com trabalhos em estágios diferentes, então a Rede traz essa diversidade que é própria dos povos indígenas”, reflete a diretora de filmes como Mulheres que Alimentam (2018) Kaapora, o Chamado das Matas (2020). “A partir do mapeamento, nos tornamos estatística. Isso mostra que estamos aqui, que existimos.”
O site reúne as produções audiovisuais, uma biblioteca de artigos acadêmicos sobre o tema, e mostra também os rostos dos cineastas, além de informações sobre suas trajetórias. O sentimento compartilhado entre as integrantes é de que, sem essas conexões, a caminhada do audiovisual fica solitária e, muitas, inclusive, param no percurso. “A gente tem percebido que muitas mulheres acabam fazendo o primeiro filme e, se não tem o recurso para fazerem outros, abandonam”, explica Graciela. “As mulheres que filmam estão trazendo questões importantes para cada comunidade. A partir de uma diversidade de olhares, o cinema tem possibilitado que as pessoas entendam que não é o índio, que são os povos indígenas, as comunidades indígenas.”
“Sem território, como falar de outras coisas?”, questiona Olinda. A maioria das cineastas, como ela, começam a partir do documentário. Com o tempo, ela tem se voltado à ficção, em filmes como Ibirapema (2022), comissionado para o programa “Atos modernos”, da Pinacoteca de São Paulo.
Enquanto curadora, Graciela percebe que a maioria das produções versam sobre a vinculação com a terra, os desafios que enfrentam, as relações e o cotidiano. Para ela, essa não é uma característica exclusiva do audiovisual, e acontece na música e nas artes visuais. “Há muito tempo, não só no cinema, mas em todas as linhas artísticas, trabalhamos com o que a sociedade não quer abrir os olhos para ver.”
É o que fala também Ailton Krenak, ao afirmar que os filmes de autoria indígena não são para “boi dormir”, porque são um “cinema de ação”, vinculados aos lugares de onde falam. Graciela considera que a Rede é um pontapé inicial e que, mesmo o recorte sendo o gênero, a iniciativa também é inédita ao sistematizar as produções audiovisuais indígenas.
“Não somos sequer estatística para a Ancine”
Um dos principais objetivos é que os números sejam uma forma de incluir as mulheres indígenas no desenvolvimento de políticas públicas, que hoje são inexistentes na área do audiovisual. “Hoje não somos sequer estatística para a Ancine”, afirma Olinda. A maioria das produções indígenas ainda não têm CPB (Certificado De Produto Brasileiro), requisitado nos processos de seleção do órgão. “Não temos políticas pensando no cinema indígena. A Rede, além de dar visibilidade, pretende conseguir parceiros para viabilizar o cinema das mulheres, pensando desde a formação, produção, até a distribuição dos filmes”, conta a cineasta.
“A gente fala em ‘cinema independente’, em ‘cinema alternativo’, como se isso quisesse dizer que a gente não precisa de recursos. Quando, na verdade, é o contrário”, pontua. “A gente sabe que fazer cinema é caro, e na maioria das vezes, as posições são ocupadas por homens brancos. Quando fazemos o recorte de mulheres, e ainda de mulheres indígenas, o acesso a recursos é menor ainda.”
Em abril, a Ancine lançou o Edital Ruth de Souza exclusivo para mulheres cineastas, em que há uma cota para mulheres indígenas. Porém, Olinda acredita que a iniciativa não isenta os órgãos representativos de pensarem em políticas específicas. “Os editais pedem que os filmes tenham uma produtora, mas a maioria das realizadoras não tem. Claro que já é um início, mas precisamos aprofundar as políticas para que elas cheguem, de fato, nas mulheres indígenas do audiovisual.”
A relação das mulheres indígenas com o fazer das imagens tem começado cada vez mais cedo, influenciadas por iniciativas de formação, como as realizadas pelo Instituto Catitu, desde 2009. Para Helena Corezomaé, o audiovisual indígena torna-se um encontro entre gerações. “Quando realizamos as oficinas nos territórios, a gente consegue ver a mãe, a filha e a avó participando. São mulheres que levam os filhos e todo mundo participa.”
O próprio nome ‘Katahirine’, que significa Constelação, para etnia Manchineri, foi dado por Nayla Manchineri, uma jovem de 15 anos, do povo Manchineri, no Acre. “É importante a gente colocar todas elas juntas para que conheçam umas às outras, se espelhem, se fortaleçam”, explica Helena.
“A nossa curadoria não é para eleger os melhores trabalhos. A ideia é colocar todas, desde as iniciantes, até as que já tem uma trajetória mais consolidada”, explica Mari Corrêa, uma das coordenadoras da Rede. Por dez anos, Mari foi co-diretora da ONG Vídeo nas Aldeias, até criar, em 2009, o Instituto Catitu. Ela acredita que os dados do mapeamento podem sinalizar, inclusive, onde as formações precisam estar mais presentes, como é o caso do Pantanal. A Rede é também uma referência para quem organiza mostras de cinema e pesquisa o tema.
Sentir, Pensar, Agir
O “cinema de ação” das cineastas indígenas é vinculado a suas lutas e formas de existir no mundo. A pluralidade das temáticas e das formas de produção também aparecem na Rede. “Vemos cineastas no Pará, que mostram a realidade de suas comunidades em relação ao Garimpo. Vemos mulheres do Xingu, mostrando sua cultura. São diferentes realidades sendo registradas por um olhar local”, sinaliza Helena.
Outro termo que se relaciona com o audiovisual das mulheres indígenas é “Sentir-pensar-agir”, fruto da pesquisa de Sophia Pinheiro em parceria com mulheres cineastas. Ela é co-diretora de Teko Haxy – Ser Imperfeita (2018) ao lado de Patrícia Ferreira Pará Yxapy, importante cineasta do bioma dos pampas, e juntas refletem sobre o encontro entre as duas. Na pesquisa de doutorado, recém concluída na UFF, Sophia desdobra o modo de fazer dos cinemas indígenas femininos, a partir de elementos como o sonho e as cosmologias espirituais.
“O sentir-pensar-agir se relaciona com o cinema das mulheres indígenas originárias, porque elas parte de um princípio de pensamento, implicação no mundo, pedagogia para com seres humanos e não humanos. É uma elaboração com o corpo todo. Não tem divisão entre pensamento e sentimento.”
Ela observa que este modo de fazer, atrelado à terra, permite que temas como a criação, a sexualidade, a encontro com seres não-humanos esteja presente nas filmografias. “Se Patrícia Ferreira filma a mãe dela varrendo o pátio da casa é porque aquilo tem um aspecto da cultura enorme. Ela está varrendo para que Nhamandu venha abençoar sua família naquele dia. Em Nossos Espíritos seguem chegando (2021), ela conversa com Nhamandu, se arruma – como diz, fica bonita para recebê-lo. Então, são produções de autoestima, de cuidado, não só no cinema.”
A Rede segue aberta para outras mulheres indígenas que queiram fazer parte, basta entrar em contato via formulário. Um dos desejos das integrantes é que, no futuro, o mapeamento alcance cineastas de outros países da América do Sul, como do México, da Guatemala e da Bolívia, onde há muitas produções.
Katahirine também está em contato com outras associações do audiovisual, como a APAN, Associação de Profissionais do Audiovisual Negro, considerada o Quilombo do Audiovisual. Como lembra Graciela, o Indigenar não é só uma responsabilidade indígena e é neste, lugar, que as alianças não indígenas devem se fazer presentes.
Além de viabilizar seus próprios filmes, o sonho é que a Rede auxilie as realizadoras a também integrarem outras produções. “Quando produzimos, por mais que não seja uma temática indígena, sempre vai partir de uma perspectiva indígena. Seja com uma câmera, ou um celular, nosso corpo, nossa mente, está ali falando. Nosso trabalho é reverberar as consciências indígenas”, sintetiza Graciela.
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